IMPRENSA REGIONAL
Jornal de Arganil - 14 Setembro 2006
1. Acaba de ser formalmente constituído o Movimento “Cidadãos por Góis”, uma associação cívica que teve a sua origem na reacção ao desnorte dos partidos políticos durante as últimas eleições autárquicas. Tem como objectivo contribuir para o reforço da vida democrática dos cidadãos do concelho de Góis, através de várias acções, que se encontram discriminadas nos seus estatutos, como sejam promover a participação e a cidadania, ter uma atitude pró-activa face aos actos da administração municipal, gerar ideias e projectos, com criação de espaços de apoio inter-institucional, não esquecendo a atenção que deve ser dada às franjas mais desprotegidas da sociedade local. Góis é, como se sabe, um concelho envelhecido, com uma apreciável percentagem dos que formaram a sua personalidade antes do 25 de Abril. Acorrentados pela censura, longe dos ares da civilização, vivia-se então adormecido, sob a tutela de um estado paternalista que traçava linhas de conduta da moral e do comportamento social. Julgava-se em geral a res publica ou as obras artísticas e literárias na base de ladainhas, não se fosse despertar os espíritos mais afoitos e perturbar a doce paz do povo português. Era o elogio pela frente, os salamaleques, as simulações, e depois, o comentário pelas costas, baixinho, à mesa do café. Noutros países, em que a democracia já está implantada há muitas gerações, as pessoas reagem com naturalidade à crítica, rebatendo-a quando necessário, dentro das ideias e do respeito pela pessoa humana. Ela é necessária para o conhecimento e serve para o estabelecimento de normas e de princípios úteis à sociedade. O processo de transição para a democracia no nosso país fez-se sob a forma de ruptura e compulsiva com o regime autoritário (contrariamente a outros, como na vizinha Espanha, feito numa linha de continuidade), provocando fracturas que ainda hoje se notam e que os mais jovens, por não terem vivido esse tempo, têm por vezes dificuldade em entender. 2. Faço parte dessa geração que se moldou nas últimas décadas do salazarismo, mas fui uma pessoa com sorte. Saí de casa paterna com doze anos incompletos, crescendo no meio dos da minha idade, solto de condicionalismos ou de amarras sociais. Era o tempo em que, quem do interior quisesse frequentar o liceu, tinha que alugar um quarto na cidade e, na maior parte dos casos, viver sozinho. Portugal era então um país rural, um deserto cultural, em que a população era 40% analfabeta, com cerca de 20.000 estudantes distribuídos por quatro universidades. Por vezes, fui trabalhador-estudante, que a mesada, muito curta, nem sempre chegava para os estudos, por força das circunstâncias. Atravessar os Pirenéus era nessa altura o sonho dos jovens sedentos de ares de liberdade. Ia-se bebê-la principalmente na rive gauche parisiense, ou em Londres, nos debates do Parlamento, imbuídos numa democracia de três séculos e meio de existência, e no Hyde Park Corner, ponto de encontro dos oradores, de qualquer condição social, que, empoleirados em cima de um caixote, expunham ideias e travavam debates com os espectadores, por vezes em discussões muito acaloradas que não eram impeditivas de depois ir-se confraternizar no pub mais próximo, com meia dúzia de cervejas. Trabalhando-se nos campos para estudantes, jovens e não só, espalhados por quase toda a Europa, amealhava-se o dinheiro necessário para custear as despesas de estadia e viagem. E ali tive ocasião de contactar com muitos, oriundos de todas as partes do mundo, e conhecer mais para além do que o nosso pequeno país amordaçado permitia. Pelo meio da minha longa carreira profissional, exercida em três continentes, numa época em que internet e globalização eram chavões de conteúdo desconhecido, arranjei tempo para aumentar o conhecimento em várias áreas, pelas cinco universidades que frequentei, cá dentro e lá fora. Mais do que ter títulos ou canudos, que raramente utilizei, tive a sorte de ter alguns bons mestres que me ajudaram a compreender melhor o espírito humano e a saber como lidar com o saber que a vida nos vai transmitindo. Fui certamente uma pessoa com sorte em poder libertar-me das amarras que a ditadura nos impunha, tal como sucedeu com muitos outros meus conterrâneos. Mas não esqueço os que a não a tiveram. Por limitações de vária ordem, materiais, espirituais ou mesmo de saúde, por conformismo, ou por falta de sorte, outros não tiveram a possibilidade de se libertar dessas amarras. Principalmente nestas regiões do interior, onde o acesso ao conhecimento era mais dificultado e o campo da ousadia ou do espírito de aventura mais restrito, com a censura omnipresente e omnipotente. 3. Um exemplo típico, que bem ilustra o nosso atraso de democracia intelectual, passou-se recentemente nas colunas deste jornal. Ao ser publicado um pequeno livro, “Febre no Rabadão”, que deixava para os vindouros uma imagem distorcida e infeliz da nossa terra e de alguém que faz parte do nosso património, fiz uma crítica aberta e leal, à obra e não ao autor (aliás, depois de pessoalmente ter tentado, em vão, que ele arrepiasse caminho e não desprezasse a História de Góis). Pretendi desacreditar, sob o ponto de vista histórico, a versão apresentada sobre a nossa terra, pondo a nu as condições em que a obra fora produzida: o autor não tinha conhecido pessoalmente a retratada época mineira, não tinha feito qualquer pesquisa, não tinha um passado de historiador ou de investigador e, por último, na sua apresentação em Góis, fez-se acompanhar de pessoa, também ela, desconhecedora historicamente do assunto. Quod erat demonstrandum: a parte histórica da obra não tinha base de sustentação, sendo portanto desprovida de qualquer valor (ficou de fora o seu aspecto literário). Nestas condições, um autor só tem três vias legítimas para ripostar: rebate com argumentos (o que poderá ser útil para a sociedade, que fica mais enriquecida e esclarecida), reconhece o erro cometido (o que só o dignificará), ou cala-se. Ingenuamente (por inconsciência?), o autor vem dizer que o que escreve não passa de ficção, proveniente, segundo afirma, “da sua capacidade prodigiosa e sonhadora, que não está ao alcance de qualquer um” (!). Mas, dando o dito por não dito, contraria o que está no preâmbulo da obra e ele próprio escreve nos jornais, em que, preto no branco, afirma que pretende fazer história. Até o seu apresentador em Lisboa, Dr. João Alves Simões, historiador, que por força da sua actividade profissional quotidiana é uma voz abalizada nesta área, diz enfaticamente estar-se em presença de uma obra que muito nos diz sobre a vida social e histórica do nosso concelho. É óbvio que o conto se insere no contexto da sociedade da vila de Góis e arredores nos anos 40. Pela primeira vez, o autor sai da sua área lírica e entra num patamar da categoria de romance histórico (não o será tanto, mas situa-se nas suas franjas), não se dando conta disso, e para o qual parece não possuir ainda preparação adequada. Mas (e isto é o que mais interessa para esta minha crónica), o autor vem também atacar o crítico, fazendo-me lembrar aquele provérbio oriental, julgo que tibetano, “quando alguém aponta para a lua, os tolos olham para o dedo”, isto é, quando se critica alguma coisa, centra-se a atenção no crítico, e se necessário, corta-se-lhe o dedo, para não criticar mais. Titubeando uma série de dislates e tentando, em defesa primária, levantar uma nuvem de poeira, foge ao âmago da questão: aquilo que o seu livro transmite sobre a História de Góis e que eu, legitimamente, como goiense e na defesa da minha terra, contesto. Aparentando julgar-se perseguido, ou talvez frustrado ou amargurado por aquilo que a vida não lhe deu, diz tontices, faz insinuações descabidas, imagina desconsiderações ao seu amigo apresentador (?!) e considera que a crítica, com as suas controvérsias, não dignifica a pessoa, fazendo desgaste nas relações humanas. Só faltou dizer, como seria bom ter-se uma censurasita nos jornais (não, é claro, como a da outra senhora, mas mais comedida, pois que até sou democrata...) para afastar estes críticos chatarrões. Então, sim, então podia viver numa doce e podre paz, embalado nos auto-elogios e nos discursos panegíricos, circunstanciais, dos amigos, num mundo que seria de um lirismo enternecedor. 4. Por razões óbvias, este caso por si pouco interesse tem para os leitores deste jornal, mas é paradigmático para o assunto que hoje aqui me traz. Muitos mais cidadãos pensando e actuando desta maneira residem na nossa terra. O nosso concelho, embora passadas mais de três décadas, possui ainda um significativo número de pessoas cuja formação cívica foi feita no tempo da ditadura e que não tiveram possibilidades de ser bafejadas pelos ares da dialéctica e da controvérsia. Os que eram adultos em 25 de Abril foram educados em clima de censura, naquele modelo social de autoridade, em que não se podia dizer alto e de maneira frontal o que se pensava sobre coisas públicas, e isso ainda perdura no seu inconsciente. Sociedade sem crítica é sociedade amorfa, propícia à mediocridade, ao laxismo, à falta de responsabilidade, à aparição de pataratas, que, incólumes, encontram campo aberto para as suas tontices e vaidades. O 25 de Abril trouxe a democracia política mas não a intelectual. E sem elas muito dificilmente se consegue a democracia social e o desenvolvimento económico. Disserta-se muito sobre a desertificação, mas, mais do que ela, é a falta de democracia que tem contribuído para o atraso da nossa terra. Com os que ficaram, com possibilidades e vontade de trabalhar, e com os que, estando longe, querem também investir e participar no desenvolvimento do concelho, muito mais se poderá fazer, dentro das oportunidades que hoje em dia o mundo globalizado e a sociedade cada vez mais desterritorializada oferecem, na base da criatividade, da organização e da competência. Para isso, há que insistir na democratização, valorizando a crítica com respeito pelas opiniões do outro, e em conjunto traçar os melhores caminhos. Quem se expõe publicamente, fazendo obra pública ou publicando trabalhos para conhecimento de outros, está sujeito a ela, sobretudo quando mexem com os interesses ou sentimentos de terceiros. E tem que aceitá-la democraticamente, sem azedumes ou sobrancerias. A democracia intelectual infelizmente não se institui com uma revolução nem muito menos se decreta, apreende-se com a vida. E nesta transição brusca que tivemos da ditadura para a democracia há que ter compreensão e paciência para estes nossos concidadãos que mais dificuldades têm tido na adaptação aos novos tempos. O Presidente da Câmara e os seus pares, bem como os outros autarcas, podem ter aqui um papel importante. Está-se em presença de um movimento fora da área do poder político, os seus estatutos proíbem mesmo a participação dos membros dos corpos sociais em partidos políticos. A Autarquia e o Movimento, sem se afastarem dos seus princípios e das suas linhas de conduta, podem encontrar pontos de contacto e de colaboração, facilitando a actuação de ambos. O Presidente da Câmara poderá ficar mesmo na História de Góis, se conseguir encontrar um equilíbrio entre as actividades destas duas instituições, que se complementam, sabendo que ele próprio nada tem a perder e que o concelho e as suas gentes terão muito a ganhar. Também os partidos políticos, na sua luta de conquista legítima do poder, podem obter neste Movimento um campo para esgrimir ideias e uma janela aberta para melhor fazer chegar à sociedade civil os seus projectos para o concelho. Todos temos a ganhar com partidos fortes e transparentes, para melhor se poder escolher na hora da verdade. Conhecendo as pessoas que promoveram esta associação e que lhe estão a transmitir força, tenho legítimas esperanças que o seu nascimento possa vir a tornar-se uma data histórica no progresso de Góis. O trabalho que tem pela frente não é para meia dúzia de anos, há um longo caminho a percorrer e a ser feito com a ajuda de muitos. O nosso concelho necessita de mais ar e de mais luz. |