IMPRENSA REGIONAL
Damião de Goes no Parnasse lovainiense
O objecto desta exposição é perceber o lugar de Damião de Goes na Universidade de Lovaina, numa avaliação feita pelos próprios lovanienses. Penso que é um assunto pertinente por duas razões : - Lovaina marca o fim da sua carreira no centro da Europa. É um marco na sua vida. De Lovaina, ele parte repentinamente, eu diria mesmo precipitamente, para Portugal, pondo fim a um período e dando início a um outro. - Por outro lado, julgo que, para alguns, terá ficado a sensação de que Goes deixara Lovaina com uma reputação menos feliz e que teria sido o orgulho ou o patriotismo lusitano a enroupá-lo numa manta de prestígio. Daí esta inserção através do olhar de um “outro”, o do lovaniense. 1 Recordemos um pouco a História da Alma Mater de Lovaina. Lovaina, a “flamenga” Leuven, capital do Brabante flamengo, é hoje uma pequena cidade de cerca de 86 000 habitantes. No século XIII, o século de oiro de Lovaina (estava-se no período da expansão económica da Idade Média), era capital do ducado de Brabante e teria então cerca de 20 000 habitantes (Amesterdão, Delft, Leyden teriam menos de 10 000, Londes 40 000, Barcelona 35 000, Praga, Viena 20 000). Situava-se no principal centro têxtil da Europa de então. Era conhecida pela sua florescente indústria de panos, posicionada na rota comercial entre Bruges e Colónia, ligando a Flandres à Renânia, dois polos de crescimento que estiveram na origem da descolagem da economia da Idade Média. Lovaina era um centro de comércio e de produção que ultrapassava as fronteiras da região. Importava-se de Inglaterra lã de boa qualidade, transformavam-na em produtos acabados, os quais, acompanhados de uma etiqueta atestando a origem de Lovaina, eram depois exportados para outras regiões, sobrepondo-se aos concorrentes flamengos. Será nesta época florescente, mais precisamente em 1317, que é contruído, no centro da cidade, um novo mercado para o comércio de panos, Halles aux Draps, um dos mais belos exemplos de arquitectura civil do período gótico do Brabante, que ainda hoje podemos apreciar. É neste mercado, um século depois, em 1425, que se vai instalar a sua Universidade. Era uma ideia que vinha germinando já há muito tempo, a de fundar uma grande universidade, para combater as conhecidas crises do século XIV. A Universidade ficou a ocupar parte do edifício e as aulas e reuniões eram muitas vezes interrompidas pelas idas e vindas dos cidadãos de Lovaina ao seu mercado, localizado no rés-do-chão. Durante dois séculos e meio, até a Universidade adquirir e ocupar todo o edifício, o que só viria a acontecer em 1676, Minerva e Mercúrio viviam juntos. Dizia-se que os professores ensinavam, tentando falar mais alto do que os mercadores. Les Halles aux Draps, que permaneceu como o edifício central da Universidade, tornou-se um seu ícone e ainda hoje é um lugar de memória para a cidade. Desde o início que contou com quatro faculdades, as de direito canónico, direito civil, medicina e artes (artes liberais) e, sete anos depois, mais a faculdade de teologia, ficando assim completa, seguindo as normas em vigor, para ser considerada de estudos superiores. As Ciências não tinham ainda adquirido o estatuto de independência, que ganharam mais tarde no século XIX. Elas eram exercidas pelos médicos e pelos filósofos. Lovaina tornou-se, em muito pouco tempo, uma das mais famosas universidades da Europa, de grande prestígio, frequentada por alunos vindo de todos os estados europeus. Passaria, assim, de cidade económica internacional a cidade administrativa. Em 1517, ao lado de muitos outros colégios, é fundado o Collegium Trilingue, ensinando as três línguas da Bíblia, hebreu, grego e latim, que seria o primeiro colégio da Europa a fazê-lo. Mais tarde, também ensinaria o árabe. Torna-se um centro de estudos humanistas, um Colégio que, com o seu novo sistema de ensino, viria a servir de exemplo a muitas outras instituições : o “método lovaniense” seria falado pela Europa. Lovaina, desde o início, mantêm relações intelectuais com as universidades de maior prestígio, como eram as de Bolonha e Paris, as mais antigas, a de Pádua, as de Oxford e Cambridge, as de Toulouse e Montpelier, a de Salamanca. Foi conhecida, na Europa ocidental, como possuindo uma das mais bem equipadas e mais progressivas universidades. Erasmo, que ali está, de 1517 a 1521, onde seria um dos grandes impulsionadores do Trilíngua, e pondo em prática as suas convicções humanistas, dizia, ele que percorrera muitas das principais universidades europeias : “Em nenhuma outra parte se estuda de uma maneira mais feliz nem com mais sossego. Em mais nenhuma outra parte se encontra um tão grande número de professores tão bem preparados”. Passando adiante das várias crises que suportou, nomeadamente as derivadas da revolução francesa e da revolução belga de 1830, a primeira originando a invasão napoleónica e a sua perda de autonomia para a França, a segunda o nascimento do estado belga, a antiga Universidade veio dar origem à actual “Universidade Católica de Lovaina”, formada em 1834-1835, hoje repartida, por motivos da cisão linguística ocorrida em 1968, entre as localidades Leuven, de língua neerlandesa, e Louvain-la-Neuve, de língua francesa. Se a primeira tem agora 26 000 estudantes para uma população de 86 000 residentes, Louvain-la-Neuve tem 20 000 estudantes (dos quais 9 000 residentes, 11 000 habitam fora), para uma população residente de 18 000. Melhor dizendo, da totalidade dos residentes da Louvain-La-Neuve, 50 % são estudantes, e, da outra metade, 33% têm ligação directa com a Universidade, o que a torna uma cidade, demográfica e caracteristicamente, universitária. É nesta cidade e nesta Universidade que Goes passa um dos períodos mais brilhantes da sua vida. E, porventura, durante a época mais gloriosa de toda a história da Universidade. Reside ali durante o ano escolar 1532-33, frequentando alguns cursos no Colégio Trilingua. Mas será mais tarde, depois da sua estadia de cerca de quatro anos na Universidade de Pádua, que Damião de Goes se fixa em Lovaina. Corria o ano de 1539. Em Março casa com Jane van Hargen e em 4 de Junho matricula-se na Universidade. Reside na rua St. Quintino, perto da Igreja de mesmo nome, rua hoje denominada de Namur. Imediatamente, ele retomou a sua ligação ao Trilíngua, tendo, como seus mentores, Peter Nannius (clérigo e professor de latim, humanista holandês) e Guy Morillon. Na opinião do historiador Henry Vocht, “Goes, Nannius e Morillon constituiam o trevo erudito que adornou o Trilingue “. Em Lovaina, Goes realizaria a parte mais importante da sua obra historiográfica. 2 Que memória deixou Goes em Lovaina? Qual o olhar, não o de um lusitano, que esse é sempre imbuído de uma certa paixão, mas o do posicionado no exterior, aquele que em melhores condições pode julgar a História? Que olhar tem esse “outro” sobre Damião? Muitas foram as palavras e as orações que, por quem com autoridade para tal, foram ditas sobre a sua personalidade e a contribuição que deu à Universidade de Lovaina Aqui quero referir, principalmente, dois quadros que, orgulhosamente, são guardados no valioso património da Universidade (solicitei cópias e autorização para as apresentar neste Congresso e, por esse facto, deixo aqui, publicamente, os meus agradecimentos à Direcção da Universidade de Lovaina). Vale a pena referir, rapidamente, a génese destes quadros. A Universidade e a cidade de Lovaina vieram a ser muito maltratadas na primeira Grande Guerra. Logo de início, em 1914, as tropas de ocupação alemãs destroem metade da cidade e, na noite de 25 para 26 de Agosto (o atentado de Serajevo fora a 28 de Junho, a guerra declarada a 28 de Julho, a 3 de Agosto a Alemanha declara guerra à França e nessa, mesma noite, invade a Bélgica), pegam fogo aos Les Halles e à Biblioteca que, em grande parte, ficam destruídas. Constituíam um ícone dos belgas e a sua destruição era importante para desmoralizar as tropas belgas. A indignação suscitada por esta destruição, considerada como um atentado à civilização europeia, faz nascer uma grande corrente de solidariedade a nível internacional. Em 1918 é constituído oficialmente um Comité Internacional para a reconstrução da Universidade e, ainda antes do fim da guerrra, 239 instituições tinham já aderido e, em 1925, tinham chegado mais de 371 mil livros. Da própria Alemanha, entre os anos 1920 e 1933, cumprindo a obrigação estipulada numa cláusula do Tratado de Versailles, sairam para Lovaina 37 bibliotecas privadas, e outras mais chegaram de outros lados. Os Halles foram igualmente reconstruidos e decorados, tendo-se disso encarregado um Comité Nacional Francês. Para a decoração foi contratado François Flameng, um pintor francês de mérito reconhecido. Flameng, professor da Escola de Belas Artes em Paris, tinha-se consagrado em pintura mural monumental, colaborando em numerosos edifícios, públicos e privados, nomeadamente em Nova York e Moscovo. Em Paris, pinta grandes quadros, entre outros, para uma das caixas de escadas da Ópera e para uma grande sala de festas da Exposição de 1900. Tem nove grandes paineis numa escada da Sorbonne, representando a fundação da Universidade parisiense. Para a decoração dos Halles desenha um conjunto de quatro quadros, mas a sua morte em 1923 não permite concluir o trabalho. Será então entregue a Georges de Geetere, este de nacionalidade belga, director de uma escola de Belas Artes, também prestigiado por actividade criativa em pintura monumental, como se pode ver em algumas igrejas belgas. Geetere faz o trabalho para a Universidade de Lovaina, seguindo fielmente os esquemas de Flameng. E em 1927, nas celebrações dos seus 500 anos, os quatro quadros aparecem expostos na sala superior dos Halles. Em dois deles encontra-se Damião de Goes. Estes quadros pretendem evocar a história da Universidade, nos seus factos mais significativos. Dois referem-se ao passado histórico, à antiga universidade, outros dois são dedicados a assuntos contemporâreos. Ou, em outra perspectiva, dois, um antigo e um contemporâreo, são consagrados à violência de que a Universidade foi vítima ao longo da sua história, outros dois, um antigo e um contemporâneo, à glória da Universidade. São quadros de 7 por 5,60 m e, por essas dimensões, não podem estar, nos tempos actuais, permanentemente expostos, sendo apresentados publicamente apenas em ocasiões especiais. A libertação de Lovaina Representa a defesa da cidade, contra o cerco feito por tropas francesas, episódio importante na História da Universidade, mas não menor na vida de Damião de Goes. Quadro simbólico, já que não se travou qualquer combate.
Os acontecimentos são por demais conhecidos. A Europa estava, nessa altura, em período de guerra prolongada. Em França reinava Francisco I, casado com Leonor de Áustria, viúva de Manuel I, rei de Portugal. Por sua vez, Carlos V, irmão de Leonor, tendo ascendido à chefia da Casa dos Ausburgos, fica o mais poderoso soberano da Europa. Francisco I e Carlos V, cunhados, lutam pela hegemonia política da Europa. O cerco a Lovaina ocorre em 1542. Em 12 de Julho desse ano, Francisco I declara, mais uma vez, guerra a Carlos V. O exército do famoso Martin van Rossem, juntamente com alguns bandos franceses comandados por Longueval, vai a caminho de Luxemburgo, na intenção de se juntar ao exército francês, este sob as ordens de Duque de Orleans. Aparece inesperadamente às portas de Lovaina. Damião estava a caminho de Haia, com a família, quando toma conhecimento que a sua cidade está a ser cercada, e imediatamente resolve regressar. A presença de Damião veio dar novo alento e alguma coragem, num momento em que a cidade estava a capitular, já com muitos estudantes a abandoná-la. A cidade parece perdida. Rapidamente é organizada a defesa, sob o comando de Damião, a quem foi pedida a sua colaboração. Enquanto se esperam reforços, Damião tenta parlamentar com os sitiadores. Mas a medida sai-lhe cara. Durante este encontro, naquela manhã de 2 de Agosto, os sitiadores, pensando que os reforços dos sitiados tinham chegado, em parte convencidos por Damião, desistem da tomada da cidade e levantam o cerco. Damião é retido como prisioneiro, levado para Picardia, no norte de França, onde fica preso durante meses. Quando regressa quatorze meses depois, a Universidade recusa-se a indemnizá-lo da soma dispendida no resgate, e, mais do que isso, Damião sente uma certa animosidade por uma parte da sua Universidade. Defende-se tenazmente, rebatendo as insinuações que lhe fazem. Compõe a sua defesa, distribuindo cópias por todas as faculdades e lendo-a perante o Conselho Académico (o original, de 14 folhas, existe ainda). De nada lhe vale. Recusam-lhe qualquer expressão de gratidão. Dizia ele, amargamente, que a Alma Mater era agora a Pia Mater. Não é difícil adivinhar e entender o ambiente que pairava na Universidade e na cidade : - Para além de os cofres estarem vazios, travavam-se duas guerras importantes, uma por poderes políticos e conquistas territoriais, outra, talvez a principal, na esfera religiosa. - Lovaina tinha-se colocado oficialmente do lado do papa e do imperador. Os teólogos lovanienses censuraram as teses de Martinho Lutero, seis meses antes de Roma ter condenado o reformador, vindo mesmo a exigir, de seus estudantes, o juramento de repulsa do luteranismo e adesão à Igreja católica. - Lovaina era o centro da luta contra a Reforma, tendo sido combatida a posição neutra de Erasmo, de que Damião, lembremo-nos, era amigo íntimo. Um mês antes da libertação de Damião, em Setembro de 1543, está Carlos V em Lovaina, aproveitando esta instituição para a luta contra a reforma protestante. E ali certamente ele discute a situação de Damião. - Damião era o intermediário entre Roma e os dissidentes alemãs, estava na encruzilhada entre os humanistas do norte da Europa e os humanistas de Roma. - Tinha disputas com várias personalidades de relevo na época, era pessoa polémica, de polémicas e de situações imprudentes. Preocupado em dilatar o diálogo com o protestanismo. Convivia com pessoas com pontos de vista religiosos diferentes do seu. Era tolerante numa época intolerante. - Manifestara uma certa insatisfação contra a vida religiosa do ocidente, criticndo como se fazia a propaganda da fé cristâ, em que “os bispos se locupletavam” (vejam-se cartas escritas ao Papa Paulo III e ao cardeal Reginal Pole, ambas de 1540). - Lembremos que, em 1941, tinha sido apreendida em Lisboa a sua obra Fides, um testemunho sobre o cristianismo etíope, publicada no ano anterior em Lovaina, a qual ficaria incluida no index. - Lembremos também a sua tradução do Eclesiastes, em 1538, recentemente descoberta em Londres. A tradução de textos bíblicos para vernáculo era controversa, na medida em que a tradição e o novo espírito religioso se defrontavam. Já Tyadale tinha sido condenado à fogueira, em 1536, por uma tradução da Bíblia (e isto, note-se, nos Países Baixos, então sob o domínio de Carlos V !). O método de tradução de Goes, no gosto pela glosa medieval, com termos alternativos para a versão de um só, não teria sido provavelmente do agrado de muitos. Ele nunca se viria a referir a esta sua obra. - Damião foi suspeito de luterarismo e isso certamente terá julgado contra ele. No meio das intrigas, há quem chegue mesmo a levantar dúvidas sobre a atitude de Damião, apodando-o de traidor, quando fora falar com o inimigo fora das muralhas. Este conjunto de circunstâncias podem ajudar, certamente, a entender o ambiente não favorável a Damião. Quando regressa a Lovaina, depois ter pago com a liberdade a segurança da cidade, ele sente-se desgostoso pela injustiça, ingratidão e deslealdade que uma parte da classe política local lhe manifestava. E do modo como tinham tratado a sua mulher. Resolve então retornar a Portugal. Goes sempre tinha pensado permanecer em Lovaina. Estava casado com uma senhora dos Países Baixos, com cuja família se dava bem. Ele próprio era também de origem flamenga: sua mãe, Isabel de Limi, era neta de um flamengo que tinha vindo para Portugal. Sentia-se à vontade naquela região, onde “foi tão bem quisto e aceito que o tinham por natural”, como dizia. Quando nasce o primeiro filho, Manuel, matricula-o na Universidade, tinha ele apenas alguns meses de idade. Em Lovaina nasce-lhe ainda o segundo filho. Lovaina prestava-lhe atenção e ele tinha ali muitos amigos. Tinha todas as condições para se sentir bem e feliz na Flandria e nos Países Baixos. Poucas semanas antes do cerco, a 1 de Junho de 1542, em carta endereçada a Beatus Rheanus, diria “...ter fixado residência em Lovaina, onde resolvi viver, se Deus quiser”. Estaria longe de pensar no drama em que seria protagonista e vítima, originando uma grande volta na sua vida. Não fora este episódio do cerco, outra teria sido a sua carreira. Tinha nessa altura apenas quarenta anos e todos os amigos lhe auguriavam auspicioso futuro. Encerrava-se assim um ciclo da sua vida, abrindo-se outro, que viria a terminar, trinta anos mais tarde, em 1574, com a sua morte, depois de outro processo igualmente injusto e desleal, em que, mais uma vez, teria que lutar na sua defesa, igualmente com muita bravura e determinação. O reconhecimento da importância e do prestígio que Damião trouxera, para a cidade e para a Universidade, viria mais tarde. Antes de partir para Portugal, Carlos V ainda lhe concede o uso de novas armas no seu brasão, “havendo respeito aos seus bons e leais serviços”, como diz explicitamente o imperador na carta que lhe endereçou, em 1544. Carlos V desejaria mesmo conhecer os pormenores do episódio do cerco de Lovaina, o que levaria Damião a escrever “Urbis Lovaniensis Obsídio”, depois de ter chegado a Lisboa. Diz Henry de Vocht, Professor da Universidade de Lovaina e iminente investigador do humanismo flamengo, a quem se deve talvez a melhor obra de História daquela Universidade, que a universidade se cortou de uma maneira vergonhosa e que o desapontamento que Damião teve com o Senado Universitário (cito) “privou o Trilingue de um amigo e colaborador que tinha já dado a conhecer-se a todos os interessados em linguagem e erudição, e que tinha expandido os conhecimentos de estudos humanísticos sobre áreas que mais tarde foram adaptadas em ciências especiais” (p. 69), acrescentando que muito dele se devia esperar. Citando novamente Vocht, “sem dúvida, ele transmitiu o brilho da sua fama à Universidade de Brabante”. Entre muitas outras referências e discursos a seu favor, assinalo aqui a de um autarca da cidade de Lovaina, no século XVIII, Michael van Langendonk, que, em 1760, edita uma história dos acontecimentos, considerada como imparcial. Na prática, trata-se de uma apologia pública, em nome da cidade, pela incúria cometida. Traz à memória do grande português a profunda “consideração e intensa simpatia” que a Universidade tinha por ele, e o “tardio conhecimento do erro no tratamento com o cavalheiresco erudito”. E acrescenta (cito desse documento-p.688) : “A Universidade perdeu um escolar que prometia dispensar a sua vida como um dos seus membros e trouxe já os seus benefícios pelos conhecimentos difundidos entre eruditos e príncipes. Ele não era Virgílio nem Cícero, ele foi um ardente apóstolo da literatura e do saber, uma capacidade de liderança (a driving power), cuja influência benéfica nos estudantes e nos escolares dificilmente pode ser medida [...] Se Goes tivesse ficado com os seus amigos em Lovaina, em vez de se ter metido em problemas com a Inquisição [...], ele teria enriquecido a Universidade e a investigação intelectual em geral, nos domínio científico da história da civilização e da missiologia, que os séculos posteriores vieram a reivindicar orgulhosamente como suas próprias criações”. Este quadro é, certamente. um exemplo elucidativo do reconhecimento da Universidade à personalidade de Damião. Como é também o seguinte. Parnasse de Lovaina Ao centro, sentado, com o seu característico chapéu bicórnio, Damião de Goes.
É consagrado ao panteão da Universidade, exaltando o seu passado, com as personalidades de que ela mais se orgulha, não apenas as que mais de perto a ela se ligaram, mas também na perspectiva do lugar que ocuparam no panteão do mundo ocidental. Ali vemos Damião de Goes, com os seus bicórneo e gola de arminho.
Chamam-lhe o Parnasse de Lovaina, não sei se terá a carga poética que tal justifique. Há muito tempo que o termo "Parnasse", topónimo da Antiga Grécia, residência de Apolo e de suas musas, se registou nas línguas modernas. Escritores franceses do sec. XVII inspiravam-se nele como símbolo dos poetas, da sua morada ou da poesia em geral. Terá surgido também, na segunda metade do século XVI, o “parnasionismo”, movimento literário contra um certo exacerbado lirismo sentimental. Este quadro não pretende, certamente, ser um lugar de memória poética, como são outros que denominaram de Parnaso, tais como: - O Parnasse de Nicolas Poussin (1594-1665), que se encontra no Museu de Madrid. A obra, procurando enredos na Bíblia e na mitologia, assimila características românticas e poéticas. - O Parnasse de André Montegna (1431-1505), no Louvre. Um célebre quadro, com Marte e Vénus ao centro, e, em baixo, as nove musas dançando ao som da lira tangida por Apolo. - O Parnasse de Rafael, um dos grandes frescos no Vaticano, com Apolo, as suas musas e grandes poetas gregos e latinos, como Dante, Petrarca, Boccacio e outros. - E até o Parnasse na Biblioteca Nacional de Paris, uma escultura antiga representando Luís XIV, com as feições de Apolo, certamente querendo simbolizar o tempo de esplendor das Letras e das Artes, como foi o do seu reinado. - Já para não falar de Montparnasse, esse célebre bairro de Paris, que fez jus ao seu nome: centro da vida boémia dos poetas e dos artistas, nas primeiras décadas do século passado. "Parnasso" associa-se a um florilégio poético. Este quadro, este pantheon (conjunto dos deuses, de pessoas importantes) é o parnasso lovaniense. Estará ainda, provavelmente, para ser feita uma leitura completa do quadro e uma interpretação do pensamento do seu autor, e não serei eu, naturalmente, a pessoa indicada para o fazer. Todo ele está de facto envolvido num décor simbólico. E não engeito, eu próprio, motivos parnasianos... Um terraço imaginário no Monte César, qual Monte Olimpo, com as nove musas, divindades que presidiam às Ciências, às Letras e às Artes Livres. A seus pés, à beira do Dyle, a cidade de Lovaina, com os Colégios, a Igreja de S. Pedro, os Paços de Concelho, o Town Hall (essa belíssima construção, que é considerada como uma dos mais importantes obras do gótico final, do gótico flamejante nos finais do século XV). O bater de asas do voo ascensional das Faculdades. As cores azul e branca da bandeira da Universidade, a Mary blue. Em ambiente parsaniano, quem seria aqui Apolo, o corifeu? Talvez, alegoricamente, o conjunto destas duas figuras centrais, os poderes, civil e religioso, que sustentaram a criação da Universidade, na companhia de Margarida, a miraculosa de Lovaina. O Deus olímpico estaria aqui nestas três figuras: Adriano de Utreque (1459-1523) Doutorado pela Universidade, foi seu professor e vice-chanceler. Foi bispo, cardeal e papa (Papa Adriano VI). Conselheiro de Carlos V, chegando a ser regente de Espanha. Duque de Brabante, João I (1267-1294) De grande prestígio local, ligado à vitória de uma célebre batalha, a de Woeringen (na Renânia), a partir da qual se tomou o controle da estrada comercial Bruges-Colónia. Tanto um como outro não são contemporâneos com a fundação da Universidade, um é do século anterior, outro do seguinte. Estas duas figuras simbolizarão os poderes civil e religioso, com os quais a Universidade se construiu. Margarida de Lovaina (Marguerite de Louvain) A única mulher do quadro, da primeira metade do século XII. Foi uma miraculosa, pertencendo aos mitos locais: a casta Margarida, servente de hospedaria em Lovaina, pertencente a seus tios, que um dia foram assassinados por salteadores. O corpo de Margarida, que fora lançado ao rio Dyle, miraculosamente ficou boiando e subindo o rio contra-corrente até Lovaina, levando à descoberta do crime. Nessa noite fatídica, Margarida serviu-se deste cântaro que a gravura apresenta. Esta figura pretenderá assim transmitir um certo misticismo, e de algum modo, uma carga poética. Ao fim e ao cabo, talvez não estaremos longe de chegar a um certo idílio parnasiano... Mas vejamos quem são os companheiros de Damião, que ajudarão a compreender a sua “entourage”. Podemos distinguir quatro ou cinco grupos. Sobre a esquerda, o grupo dos humanistas: Desidérius Erasmo (1466-1536) O “príncipe dos humanistas”. Esteve em Lovaina várias vezes, ali residindo em dois períodos. Primeiro entre 1502 e 1504, então com quase 40 anos e, depois, entre 1517-1521, como atrás dissemos, esforçando-se por reformar o ensino. A sua influência em Lovaina foi considerável, em particular na criação do Colégio das Três Línguas, cujo ensino foi inspirado nas suas concepções humanistas. Viria a morrer em 1536, em Basileia, quando Damião está estudando em Pádua. Thomas Moore (1478-1535) Morre um ano antes, em 1535, decapitado na Torre de Londres, às mãos de Henrique VIII. Sabe-se que nunca estivera em Lovaina, mas, como grande humanista que foi, teve muitas ligações com personalidades da época, nomeadamente com Erasmo, em Londres e em Pádua, com quem aqui vemos conversando. Juste Lipse (1547-1606) O humanista e filósofo clássico, do período posterior. Depois do humanismo europeu post-erasmista, ele evoluiu rapidamente no seio da Renascença, de um movimento cultural inovador para uma disciplina científica erudita. Foi, por assim dizer, o herdeiro do método crítico de Erasmo. Depois de muito viajar, foi em Lovaina professor de história e de latim. Graças a ele, a Universidade reencontrou o renome internacional que tinha perdido após as de 1572 a 1588. “O homem mais sábio do seu tempo”, dizia dele Montaigne. Mais atrás, um grupo que chamaremos de sábios: Damião de Goes (1502-1574) Ficou considerado em Lovaina pela sua ciência e pelo seu cosmopolitismo. Não, como o Professor Amadeu Torres bem assinala, de um cosmopolitismo passivo de turista, mas do autêntico pela actividade em várias áreas. Cosmopolita ou pantecopolita (o novo vocábulo que o neólogo Professor Amadeu Torres, mais uma vez, nos oferece), Damião de Goes desdobra-se no campo da diplomacia e actividade comercial em representação do rei português, pelo convívio com pessoas de alto prestígio político e intelectual, pelas viagens que faz na procura de novos conhecimentos, pelo interesse às letras clássicas, pelo amor à pintura e à música de que foi compositor e executor, pelas preocupações morais e religiosas, enfim, pelo seu aberto espírito humanista. Terá passado à História da Universidade como homem sabedor, como frequentemente é citado. Cornelius Gemma (1535-1578) Doutorado em Medicina, já na segunda metade do século, teve reputação internacional. Dedicou-se também à astrologia, tentando estabelecer um método dialético único para todos as disciplinas científicas. Fez uma observação científica do cometa de 1577, um fenómeno que constituíu na época um domínio de pesquiza apaixonante. Filho do também célebre Gemma Frisius, da geração científica da primeira metade do século XVI, também interessado por trabalhos de astronomia. O humanismo constituia uma base social no campo das ciências, nomeadamente na medicina ou na astronomia. Ao centro: Leonardo Lessius (1554-1623) Jesuíta. Considerado um dos principais teólogos da época. Maximiliano Morillon (1516-1586) Acumulou muitas funções eclesiásticas, nomeadamente Bispo de Tournai. Filho do Professor Guy Morillon, que tinha grande amizade com Damião de Goes. À direita: Dirk Bouts (cc.1410-1475) Pintor flamengo. Tem grandes quadros na Igreja S. Pierre e no Hotel de Ville de Lovaina. Constantino Meunier (1831-1905) Pintor e escultor, vivendo principalmente em Bruxelas. Quentin Metsys (1465-1530) Pintor. Também especialista em joalharia, como era seu pai. No quadro tem na mão uma peça. Pierre Joseph Verhagen (1728-1811) Pintor belga, instalado em Lovaina, recebendo encomendas da própria Imperatriz Maria Teresa. André Vésale (1514-1564) Fundador da anatomia. O maior anatomista do século XVI. Está no panteão dos pioneiros do método científico moderno. Nasceu em Bruxelas, estudou e trabalhou em Lovaina, antes de ir para Pádua, onde continuou as suas pesquisas anatómicas. Charles de Bériot (1802-1870) Compositor e violinista, com carreira internacional. É o fundador da tradição belga do violino no sec. XIX. Nasceu em Lovaina. Henry Rega (1690-1754) Célebre professor de medicina, no século XVIII. Em 1746, quando Lovaina foi novamente ameaçada por tropas francesas no contexto da Guerra de Sucessão austríaca, Rega evitou o ataque à cidade, tendo sido aclamado como o salvador da cidade. À esquerda: Ericius Puteanus (1574-1646) Professor de latim no Trilíngue. Pieter Coutereel (sec. XIV) Teve papel activo na política local, lutando contra a oligarquia dos poderosos, conseguindo uma repartição mais democrática dos poderes. Joseph van Ryckel (1581-16...) Abade da Santa Gerturdes, um mosteiro local, fundado em 1204. Estudante da Faculdade de Teologia, com publicações de motivos religiosos. Johann Heinrich von Franckenberg (1726-1804) Arcebispo de Malines. Pierre Ram (1804-1865) Primeiro reitor da Universidade Católica. Temos pois um conjunto de personalidades : - Três médicos de grande reputação internacional: Vésale, da 1ª metade do século XVI, Gemme, da 2ª metade, e Rega do século XVIII. - Humanistas de maior prestígio: Erasmo, Moore, Lypse, - Cientistas: Goes e Gemme, - Teólogos: Lessius, Morillon, - Artistas: violinista Bériot e pintores e escultores, talvez de mais de nível local e da região, - Professores e reitores locais, - Bispos e Abades. Sintetizando : - O período temporal do quadro estende-se do século XIII ao XIX. Nos extremos cronológicos temos o Duque de Brabante (que morre em 1294) e o pintor Meunier (que morre em 1905). São excluídas as pesonalidades contemporânias da época da pintura, estas aparecendo num outro dos quatro quadros, “Colocação da primeira pedra da biblioteca universitária, em 1921” (vendo-se aí Poicaré, Presidente da República francês, a Raínha Isabel e o Príncipe Alberto de Mónaco, entre outros). - Algumas figuras distinguiram-se não tanto pela actividade na Universidade, mas pela projecção que tiveram na sociedade do país ou do mnndo. - Damião (que, apenas por curiosidade, é a única personagem que aparece por mais de uma vez no conjunto dos quatro quadros) aparece aqui, tendo ficado de fora muitos outros bem conhecidos. No olhar dos lovanienses, é, não apenas o libertador da cidade, mas uma das personalidades que mereceu ficar no seu panteão. 3 Antes de terminar esta pequena exposição, que nada mais pretendeu que refectir sobre o olhar que a Universidade de Lovaina teve sobre Damião, gostaria de apontar o facto de estes dois quadros, no seu conjunto, retratarem, de certo modo, a personalidade de Damião de Goes. Normalmente Goes está na nossa memória colectiva, como o humanista, o diplomata, o tolerante, o intelectual e o cronista, o estudioso e o investigador, o musicólogo e o amador de arte, o comospolita e o pantecopolita, o parnasiano. E daí a razão de estar neste panteão (ou parnaso). Mas o outro quadro mostra-nos uma outra faceta do seu carácter. A sua afoiteza. O seu atrevimento. O seu espírito corajoso e determinado. É, digamos, um símbolo do seu carácter combativo. De combatente por ideias, por valores, pela reposição da verdade, como sempre revelou ao longo da sua vida. Mesmo no período final da sua vida, quando encarcerado, sozinho, abandonado por quem o devia ajudar, diminuído física e psicologicamente, envolvido nas malhas de uma grande intriga, ele revelaria outra vez o seu espírito batalhador. Penso que, hoje em que estamos a comemorar o quinto centenário do seu nascimento, nesta época em que, um pouco por toda a parte, tem faltado alguma coragem para não deixar resvalar a nossa civilização e os nossos princípios para caminhos indevidos, não nos devemos esquecer desta sua imagem. Não nos fiquemos apenas pelo retrato de Dürer, ou o de Philipe Gallo, de rosto seráfico. Com uma moca na mão e um inimigo, agarrado pelo pescoço, na outra, recorda-nos o tema de um dos seus motetes: Não te alegres a meu respeito, inimigo meu ! Se eu cair, hei-de tornar a levantar-me. _________ Quadro 1 – Libertação de Lovaina, 1542 Quadro 2 – Incêndio da Biblioteca, 1914 Quadro 3 – Colocação da primeira pedra da biblioteca universitária, 1921 Quadro 4 – Parnasse louvanista __________ Nota Para além de dois seus filhos que mais tarde ali estudaram, note-se, e apenas por curiosidade, a reivindicação que uma família local faz de ser descendente de Damião de Goes. Já no nosso tempo foi descerrada em Lovaina, dando o nome a uma rua, uma lápide com o nome de “Rue Emile Goes”, um notário, falecido em 1935, que, pelos vistos, também se distinguiu em Lovaina. |