A Misericórdia de Góis e o Dr. Mário Paredes Ramos
O dr. João Alves das Neves, num recente artigo publicado em A Comarca de Arganil, sob o título "O Grande Livro de Góis", refere-se ao Arquivo Histórico de Góis, elogiando o papel de investigador do seu autor, dr. Mário Paredes Ramos. Este artigo não me pode deixar indiferente, sob pena de se ignorar o trabalho e a obra do dr. Mário Ramos e de contribuirmos na letargia da pesquisa da nossa História. O dr. Mário Ramos (que não era um historiador profissional, mas sobretudo um homem das Letras e do Direito, apaixonado pela História) é para mim um paradigma do investigador. Pessoas com credibilidade nesta área, que eu não possuo, como o dr. João Alves das Neves e outros, têm sabido apreciar a sua obra e conferir-lhe o seu devido valor. Mário Ramos não foi certamente um homem da Nova História, que esta estava ainda no seu alvor. A Nova História substitui a História-narrativas pela história-problemas, e Mário Ramos não os colocava; considera as relações com as outras disciplinas para alcançar a história total, e Mário ramos não o fazia. Mas Mário Ramos estava atento aos "silêncios da história" e tentava preencher os espaços que se lhes apresentavam. Ele inquiria a personalidade da testemunha e as condições da produção do testemunho. Lembro aqui aquela magistral conferência proferida pelo historiador José Mattoso, há uns anos, na Universidade Nova de Lisboa, sob o tema "A escrita da História". Em que ele assinalava que, depois do exame do passado através das suas manifestações, e antes da elaboração do discurso histórico, havia o momento de representação mental resultante desse exame. Referia-se ele à necessidade que havia de transformar os materiais colhidos na observação contemplativa em representação mental. "É preciso detectar as anomalias, fazer falar indícios mudos, acumular provas, inventar formas indirectas de revelar o que os documentos dizem claramente" (...) "descobrir como as unidades se relacionam com os respectivos conjuntos, e estão entre si e com essa mesma totalidade". Mário Ramos tinha essa preocupação. Não se limitava a ouvir e a ler. Pensava e germinava ideias. Tentava compreender o que estava para além do testemunho. O dr. Mário Ramos, com as suas meticulosas pesquisas e análises, informa-nos que a Misericórdia de Góis foi fundada no ano 1598, e não um século antes, em 1498, como vários historiadores e escritores têm referido - um erro originado provavelmente por uma deficiente leitura do texto dos seus Estatutos levara a que se colocasse no seu título a data errada (curiosamente a mesma leitura que o dr. João Alves das Neves faz naquele seu artigo). A essa conclusão ele chegou, não só através de uma interpretação atenta daqueles Estatutos e de outros documentos, mas certamente também por uma representação mental do acontecimento. Não é de facto natural, para quem conheça um pouco da História de então, a local e a do reino, nomeadamente o modo como foi criada a primeira Misericórdia, a de Lisboa em 1498, que na mesma data (ou mesmo nas primeiras décadas do século XVI) tenha sido instituída a de Góis. E ainda por cima sabendo-se que a aquisição do terreno para a sua instalaçõa e a elaboração dos seus primeiros estatutos foram processados cem anos depois. E quando se aponta D. Luís da Silveira como um dos 100 "irmãos" da Misericórdia de Lisboa, não se está a referir provavelmente ao nosso primeiro conde de Sortelha. Em 1498, na altura em que era senhor de Góis a sua avó D. Beatriz, e estando o seu pai na pujança da sua vida social e da corte, custa a crer que o então jovem e irrequieto Luís, cuja personalidade é conhecida, fosse um dos principais daquela instituição de assistência. É de presumir sim, digo eu, que se trate do seu bisneto, o homónimo D. Luís da Silveira, terceiro conde de Sortelha, que nesse final do século XVI era também senhor de Góis e guarda-mor do rei. Aliás seu tio, D. Luís de Lencastre, casado com Filipa de Meneses, filho do segundo de Sortelha, teria sido Provedor da Misericórdia em 1588-89. Mário Ramos não coloca neste seu estudo uma mera hipótese de trabalho. Afirma-o sem reservas, logo na primeira linha, qual a data da fundação da Misericórdia. Compreende-se que alguma personalidades competentes que têm historiado as Misericórdias portuguesas (lembro, entre outros, Fernando da Silva Correia, Joaquim Veríssimo Serrão, Ivo Correia de Sousa, que têm obra notável sobre este assunto) indiquem sempre a data de 1498 para a génese da Misericórdia de Góis. Eles não pesquisaram a sua história, que tal não era o seu objectivo, e não tiveram concerteza conhecimento do estudo de Mário Ramos. Limitam-se a fazer a transcrição de elementos de obras anteriores. Todos eles se basearam numa lista feita por Costa Goodolphim, em 1897, que, como é do conhecimento geral, contém muitos erros e omissões, alguns deles de palmatória. E todos eles, conscienciosos historiadores, deixam claramente nas suas obras a indicação de que as datas indicadas por Goodolphim não são fiáveis, havendo necessidade de serem pesquisadas localmente pelas respectivas instituições (para a Misericórdia de Góis é mesmo indicado, na data da sua fundação, a existência do hospital que, como se sabe, foi instituído na segunda metade do século XVI...). Muitas Misericórdias têm rectificado as datas de Goodolphim, mas infelizmente a de Góis não teve ainda possibilidade de estabelecer oficialmente a data da sua fundação. Mas se isso se passa com aqueles historiadores, já com dificuldade se pode aceitar que outros se refiram ao estudo de Mário Ramos e simultaneamente omitam as suas conclusões históricas. Pode-se não concordar com ele, que o Arquivo Histórico não é nenhuma Bíblia nem o que lá se diz é dogmático. Mas nesse caso há uma obrigação moral e deontológica de assumir a discordancia e explicar as razões. Omitir as conclusões de uma pesquisa séria é um desrespeito ao seu autor, à nossa terra, à nossa região. E por isso nos causa também desgosto, e não só a mim, continuar a ver que a Câmara Municipal de Góis, depois de ter reeditado, e muito bem, o Arquivo Histórico de Góis, permita que se continue a ter no Largo do Pombal uma placa assinalando os cinco séculos da Misericórdia. Talvel que com ela alguém se sinta muito ufano, mas por mim dá-me mais satisfação e orgulho saber que aquela importante instituição goiense tem "apenas" quatro séculos, e ao mesmo tempo ter consciência do que sei e porque sei. Bem sabemos que o intuito de exaltação das glórias passadas, que faz parte da natureza humana, limita a objectividade histórica. E que são motivo, por vezes, para se distorcer a verdade. Mas que figura andamos a fazer, perante outras comunidades, se possuímos um investigador e o elogiamos, e depois desprezamos o seu trabalho? Que exemplo estamos a dar aos jovens que estão a sair das nossas escolas? Valerá a pena tentarem, pensarão eles, fazer pesquisa histórica e conhecer melhor o passado?
Nota - É esta a terceira vez que na imprensa local refiro este caso da datação da Misericórdia de Góis, por considerar que é importante conhecermos a verdade histórica, de uma história que nós, goienses e beirões, possuímos e de que muito nos orgulhamos. Não quererá a Misericórdia de Góis, à semelhança de outras que já o fizeram, ter uma opinião oficial sobre o assunto, prestigiando-se a si própria e contribuindo para o enriquecimento histórico do concelho e da região? A Comarca de Arganil 25.Maio.2000